É assim que , por vezes , nos descobrimos grávidos .
Grávidos de alguma idéia , projeto , tela , música , poesia . . .
Não sabemos o que exatamente vai nascer , como , onde , quando . . . Apenas sentimos que algo nos aconteceu .
Em um encontro com outra alteridade , fomos marcados de alguma forma , fecundados pela diferença –
o que chama para a composição de um outro corpo , um corpo que possa acolher e encontrar sentido para este contágio :
“ E é pelo fato de que a marca abre para o desassossego pelo desmanchamento das formas constituídas
que se faz necessário que se invente um novo corpo para encarnar este novo estado ” .
CORPO GRÁVIDO
Parte II
Tatiana Ramminger
Um Processo Criativo pode ser entendido como a invenção deste novo corpo .
Resultado de algo que nos tirou do sossego , da estabilidade . . .
Uma Marca .
A tal Marca do diferente-em-nós , do estranho-em-nós , que nos chama . . . para compor algo com ele .
Este novo estado provoca , inicialmente . . . certo mal estar .
Uma angústia frente a este algo que está por vir e ainda não veio , > o tal legítimo vir-a-ser que . . . ainda não é .
A nós cabe suportar estar suspensos neste “ entre ” , presos ; na eternidade fugaz de um devir . . .
Temos que aprender a esperar , talvez até mais de nove meses .
Esperar um à posteriori de sentido > que ainda não se conhece :
“ A atitude mais sábia diante disso seria a Serenidade , tal como compreendida por Heidegger ” :
Quando se espera o inesperado nada há a fazer senão … manter-se na espera ;
esperar com os sentidos atentos e abertos , mas sem uma direção pré-selecionada . .. ” .
Trata-se de uma relação muito particular com o tempo:
– em que o presente é o espaço do acolhimento de um acontecimento ,
um presente que não está entupido pelo passado e que não impede a aproximação do futuro . –
Rosenfeld
A Gravidez Biológica não deixa de ser a melhor metáfora deste processo ,
porque é a concretização deste corpo que espera , se transforma e cresce ,
transgredindo limites a cada dia , acolhendo e nutrindo um diferente . . .
Um corpo definitivamente marcado pelo Encontro.
No entanto , está longe de ser só isso . . .
Basta pensarmos em como , desde o início , o corpo fecundado “ tem que ser capaz de dar sentido ” a este Encontro :
caso contrário o processo : não tem continuidade .
Apenas o desejo de [ não ] engravidar não basta para [ não ] engravidar . . .
Não é só a mulher , é sua consciência , que escolhe ou não engravidar :
“ seu corpo também ” > tem que se deixar afetar : dar passagem a esta possibilidade .
Quem vive no próprio corpo o crescimento de um outro , não pode deixar de se afetar por esta alteridade .
Vê , dia a dia , algo despontar : entre ela e o mundo . . .
Vive , literalmente , em si , a passagem de um corpo para outro .
Corpo que não cabe mais em suas antigas roupas , que não passa mais pelos mesmos lugares , que exige um passo desacelerado , uma espera . . .
Corpo que procura acolher este acontecimento :
Gravidez : > carregando-o de sentido .
Aqui , então , proponho entender a “ Gravidez ” , seja ela física ou simbólica , como um : Acontecimento .
O Acontecimento envolve os corpos de tal maneira que nenhum corpo pode estar fora de um acontecimento . . .
Poder-se-ia até dizer que : > não é algo que nos acontece , e sim : > nós que “ entramos ” em um acontecimento .
Acontecimento inesperado , imprevisível , que desmancha definitivamente nossa (re)conhecida trama de representações e :
> nos empurra para a construção de um Novo Possível :
O Acontecimento afirma sua autonomia ,
nos afetando proporcionalmente à intensidade de sua independência e indo além de nossos recursos (in)conscientes para controlá-lo .
Está em suspenso > habitando o entre > fundando e rompendo mundos .
“ Ao destroçar um mundo ele é sempre a prefiguração da morte ” > morte de uma ilusória totalidade . –
Figueiredo – 1994 – p. 154 –
Isto nos leva a senti-lo , inicialmente, como uma Crise :
– uma ruptura de existência – que chama – por si mesma – a integração do acontecimento .
Integrar o acontecimento é dar-lhe sentido , traduzindo-o e fazendo-o transitar de :
um início caótico : onde apresenta-se como signo vazio de sentido :
até a construção de um novo território , e não por isso , menos provisório .
Provisório , justamente por conservar sempre incompleta a presença ,
e por esta razão , acaba por criar solo para novas composições , para outros Acontecimentos .
O acontecimento é aparentemente igual para todos :
é a nossa conduta frente a ele que vai singularizá-lo e determinar a ética de cada um , o que cada um acredita .
A ética aqui é a ética de Spinoza que afirmava que todo corpo está aqui para realizar sua natureza ,
> o que nada mais é do que realizar afetos , > realizar sua capacidade de :
Afetar e ser Afetado .
“ O homem não se conhece a si mesmo , senão pelas afecções do seu corpo e suas idéias ” .
Sendo assim , Natureza é Relação ,
um ser que estiver no vazio não é Nada ,
– e a qualidade desta Relação estará intimamente ligada à Potência deste Corpo ao poder realizar algo . –
Quando dois corpos se afetam mutuamente pode haver uma Composição ou Decomposição afetiva , o que marca um Aumento ou Perda de Potência .
Quando há Composição, podemos falar de um Bom Encontro
ao contrário,
a Decomposição determina um Mau Encontro :
Mas pode haver , e geralmente é assim > os dois ao mesmo tempo .
A ética aqui não está nos manuais , não tem a ver com a moral , mas está : dentro de nós . – é isso aí : dentro de nós . –
Somente nós mesmos podemos determinar que acontecimentos nos compõem , aumentando nossa potência ,
e quais são aqueles que apenas enfraquecem nossos recursos de entendimento . . .
A ética, portanto , está em desviar dos Maus Encontros e procurar Bons Encontros .
Suely Rolnik integra estes conceitos :
– acontecimento – encontro – corpo fluido – e ética falando em três linhas de vida:
A primeira :
Invisível e Inconsciente : > é um traçado entre os corpos, em seu Poder de Afetar e ser Afetado.
É : linha de fuga > que desaba territórios para que outros possam surgir .
Corpo Afetivo .
A terceira linha:
ao contrário , > é a composição que conseguimos fazer :
– é o Território, linha dura e visível : que nos permite a Tranqüilidade da Ancoragem e do Contorno .
Corpo Possível : Visível .
A segunda linha:
É a que faz a interlocução entre estes dois campos:
linha de simulação > que oportuniza a passagem da dimensão dos afetos ou seja :
da primeira linha > para a dimensão do território visível que é a > terceira linha – e vice-versa – .
É o vaivém entre Composição e Desmanchamento de modos de existência:
Corpo grávido > Grávido de virtualidades que ainda não se efetivaram .
Aqui, tomamos o destino em nossas mãos e, tal qual as três Moiras > tal qual a maneira que cada um fia , tece e compõe estas linhas é que vamos determinar as diferentes estratégias de desejo .
Ou seja , é o que vai determinar a Ética , a procura de Bons ou de Maus Encontros .
O que vai nos dizer o que compõe ou não > é o Entendimento .
É o Entendimento que dá sentido aos encontros: > ao Acontecimento.
No entanto , não existe nenhum modelo que eu possa seguir , eu não tenho como saber previamente como será o Encontro , senão através da Experiência .
– a Produção de um Modo de Existência
Um Processo de Subjetivação nada mais é do que : a Produção de um Modo de Existência :
que não tem a ver com o sujeito , > mas com o que lhe acontece e com o sentido que ele consegue encontrar para estes acontecimentos .
Há momentos em que a Existência cristaliza-se em um Modo de Ser
> momentos em que a subjetividade reconhece-se em um corpo ,
> em uma unidade : podendo-se até falar em : Identidade .
No entanto , a Identidade , assim como o amor cantado pelo poetinha : … só é eterna enquanto dura …
Ou seja , só vale enquanto continuar fazendo : sentido .
Voltando para a filosofia , podemos entender este processo com o auxílio de Nietzsche .
Ele acredita que o homem é movido por duas Forças antagônicas :
as Ativas
e
as Reativas
– enquanto as Forças Reativas funcionam como um reservatório de marcas mnêmicas à dispo-sição para fins adaptativos ,
– as Forças Ativas buscam a criação de novas maneiras de viver incessante e incansavelmente .
A partir destes dois conceitos , ele desenvolve formas de viver que se alternam , se misturam ou se sobrepõem na constituição de uma subjetividade > são circuitos de vida aos quais chamaremos :
– o Circuito Escravo > predomínio das Forças Reativas
e
– o Circuito Nobre > predomínio das Forças Ativas
“Quando uma subjetividade está comandada por um Circuito-Nobre , isso significa , em primeiro lugar , que ela tem referência vital na afirmação da sua vida enquanto devir :
Assume a própria força
Mas ,
o escravo habita-nos , na medida em que nos deixamos > escravizar pelo Outro .
Outro – Imaginário que acreditamos deter a nossa própria potência castrada .
Aqui já podemos entender a discriminação realizada pela filosofia clássica que ao separar : Desejo e Pensamento > separou o corpo daquilo que ele pode :
do sentido que ele mesmo pode encontrar no que lhe acontece . . .
Separou-o [o corpo] de sua Vontade de Potência :
de sua capacidade de construir a vida , ao invés de estar subjugado a uma vontade Outra que a determina .
Esta vontade outra pode ser tanto o ideal perfeito de Platão ,
quanto a vontade divina das igrejas ,
ou ainda a mídia contemporânea que invade nossas casas com imagens assépticas e efêmeras . . .
Restabelecer um Circuito Nobre passa por habitarmos definitivamente Nossos Corpos e Nosso Tempo :
encarnando o devir . . . > devir que ultrapassa as identidades e nos faz ser tudo ao mesmo tempo :
alertas ,
inconscientes ,
seguros ,
inconseqüentes ,
apaixonados ,
pessimistas ,
sonhadores ,
ambivalentes . . .
Não se trata aqui de uma Natureza Pura que varia , mas de uma Pura Variação .
Rolnik – 1989 – p.34.
Neste sentido , Guattari sugere que os fenômenos de expressão social ” não são ” uma simples somatória de subjetividades individuais .
Ao contrário , é a subjetividade de cada um de nós que é “ atravessada ” por inúmeros agenciamentos coletivos > que em algumas circunstâncias podem se individuar .
A maneira com que os indivíduos se relacionam com estes agenciamentos coletivos é que vai determinar o circuito predominante em sua subjetividade .
Ele pode submeter-se a eles , tal como os recebe ou ainda criar > a partir deles > reapropriando-se de seus componentes de forma singular > singularizar . . .
Seguindo a tradição platônica , a tendência atual é que “ apenas se reproduzam ” valores e sentidos universais ,
– ao invés de : buscar sentido na própria experiência :
“ A experiência deixa de funcionar como referência para a criação de modos de organização do cotidiano : > interrompe-se os processos de singularização .
É , portanto , num só movimento que nascem os indivíduos e morrem os potenciais de singularização ” .
– Guattari & Rolnik –
A partir dessas considerações , podemos pensar que qualquer ruptura com o modo de funcionamento de nossa sociedade atual passa por :
resgatar uma espécie de Função – Gravidez .
A possibilidade de se deixar fecundar pela vida :
– por algo que nos movimente por inteiro :
– que faça a gente funcionar como um canal para a proliferação de formas de existência > que se imponham a cada nova configuração da experiência :
Um estranhamento que “ acolhemos ” , carregamos conosco , nutrimos e esperamos amadurecer : até que possa nascer : compor território . . .
carregando-o de : Sentido .
by Fy