windmills by fy

07/04/2014

a dança dos orixás – I

Filed under: Uncategorized — Fy @ 11:59 PM

 


foto deleuze candomblé auemba 2b

 

 

 


                                                                                                                                                                                                           

Interessa-nos mais o que devém o corpo-consciência , quando se abre .

 

 

 

 

Afinal , o que é um corpo aberto ?

Se existe uma consciência “obscura”  ( e por isso mesmo mais clara ,  como diz Deleuze ,  captando o mundo todo ) ,

” impregnada ”  pelos movimentos do corpo ,  estes intensificam-se

e libertam-se ao transmitirem-se à consciência do corpo .

 

 

 

Por isso , no transe os movimentos parecem descontrolados .

 

 

 

Qualquer coisa de muito particular acontece ao corpo tornado corpo-consciência :

a visão do corpo ( do exterior do interior ) que o acompanha abre um espaço ,  alargando e transformando a zona indefinida de fronteira .

 

 

 

Não existe afinal um ponto de vista ,  nem a fronteira é uma linha , um plano ou um volume .

Saímos do espaço euclidiano e entramos num espaço topológico , intensivo .

Significa isto que os limites do corpo próprio se alargam indefinidamente ganhando profundidade ( topológica ) .

Ao mesmo tempo ,  é todo o corpo que se transforma .

O seu em-redor torna-se espaço , confunde-se com um espaço de intensidades ,

de osmose potencial , de visões e tatos a distância ,  espaço pronto a entrar em conexão com intensidades de outros corpos .

No corpo aberto fervilham ” afectos de vitalidade ” ,  como diz Daniel Stern , referindo-se às crianças .

 

 

 

Precisamente , as crianças têm o corpo aberto .

Um corpo que é como que o avesso do corpo paranóico fechado , hostil ,

revestido daquela ” carapaça caracterial ” de que falava Reich .

Abrir o corpo é ,   antes de mais , construir o espaço paradoxal ,  não empírico ,  do em-redor do corpo próprio .

Espaço paradoxal que constitui toda a textura da consciência do corpo-consciência :

um espaço-à-espera de se conectar com outros corpos , que se abrem por sua vez formando ou não cadeias de sem fim .

 

 

 

Defini-lo como afetivo não quer dizer que se o caracteriza segundo os múltiplos modos das afecções .

Teríamos então não só um espaço ,  mas um corpo alegre ,  triste ou melancólico .

O espaço e o corpo-consciência são afectivos porque neles se formam turbilhões poderosos de vida ,

de que os afetos de vitalidade constituem o estrato subjacente .  A este espaço chamaremos zona .

 

 

 

Abrir o corpo é criar a zona em que o corpo , visto do exterior do interior ,  entra em contágio com o mundo .

 

 

 

É a zona do devir constante das crianças que brincam ,  em que as palavras agem e os gestos falam ,

em que o corpo espectral se dissolve nas forças que se conectam com as forças do outro .

Aí o intenso caos afetivo começa a produzir traços , intensidades dirigidas ,

um começo de consistência no engendramento de agenciamentos .

 

 

 

A zona é , por vocação , o espaço dos primeiros agenciamentos do corpo com o mundo .

Tal fato decorre naturalmente do metabolismo próprio da superfície de fronteira .

Aí se sobrepõem o interior e o exterior numa zona de tensão :

coincidindo e ao mesmo tempo opondo-se ,

o paradoxo desdobra-se abrindo o espaço e multiplicando-se .

 

 

Vodpod videos no longer available.

 

 

A zona paradoxal de hiper-excitabilidade , formada por intensidades divergentes ,

sustem os investimentos das forças que procuram conectar-se com as forças do mundo .

 

 

 

Enquanto espaço paradoxal ,

definido por uma multiplicidade de intervalos

e espaços heterogéneos de onde irrompe a energia de investimento ,

a zona constitui assim o lugar privilegiado do agenciamento .

Porque o agenciar continua o movimento paradoxal ,

retirando-lhe uma parte do seu caos .

 

 

 

 

O paradoxo , pela tensãointervalar que implica , desencadeia um movimento proliferante também paradoxal :

não com o fim de encontrar uma solução (numa descarga tensional , por exemplo ) ,

mas de dar consistência ao seu próprio movimento .

 

 

 

Por isso tende a agenciar , quer dizer a criar dispositivos conectivos-disjuntivos que mantenham ou amplifiquem a sua energia ,

de tal maneira que visem , por sua vez , novos agenciamentos de intensificação de forças , e assim por diante .

Os agenciamentos , além de modais e locais , podem fazer do corpo inteiro um só dispositivo – como na dança ,

por exemplo no Contacto-Improvisação em que atendência vai no sentido de construir uma espécie de corpo único

agenciando ( e agenciado por ) dois corpos em movimento que , no entanto , se agenciam , cada um por si , com o espaço ou com os outros corpos .

 

 

 

Assim acontece , igualmente , no amor ou na amizade .

 

 

Abrir o corpo é abrir o espaço de agenciamento de fluxos de intensidades , para que estes fluam segundo as vias mais adequadas .

Agenciar é tecer , serzir , atar , anexar , conectar , forjar os dispositivos apropriados à intensificação das forças ;

numa palavra , é dar consistência à osmose para que esta não se transforme numa sopa psicótica .

 

 

 

A criação de agenciamentos uma morfogénese .

A abertura do corpo-consciência define a zona , como espaço privilegiadode agenciamentos .

Eis o nosso ponto de partida para pensar os processos clínicos e artísticos em recíproco devir :

por exemplo , não é porque os agenciamentos artísticos abrem o corpo que adquirem poderes terapêuticos ?

Toda uma série de problemas , extremamente complexos , decorre desta simples questão .

 

– José Gil

 


 

foto deleuze candomblé text orixás 1

Mais uma vez   “ vizinhando ”  toda aquela coisa nômade : sem fronteiras ,

que ondeia livremente nas cartografias que realçam os devires todos-possíveis de Deleuze e Guattari ,

neste post , a busca é atravessar as fronteiras , des-territorializar ,

contaminar movimentos e melodias , ondear a hibridez pulsante de um corpo que dança .

 

 

Ah… é preciso compreender , é preciso todo um saber do corpo, para que o corpo dance .

Um compreender com a alma, com poros e veias.

 

 

Só este saber-sentir permite que todo o corpo pulse os movimentos do inexprimivel que o invade

até que toda a virtualidade possa atualizar-se na materia sensível do mundo e revelar a integridade múltipla de um instante .

 

 

Só desta maneira pode-se compreender a dança africana ,

que tanto contamina e atrae por sua potência geradora de significados ,

seu sentido de identidade com referência constante a um corpo simbólico múltiplo

e onde os movimentos encantam por carregar detalhes de uma narração mitológica a ser descoberta e explorada ;

– ah ….  sem deixar de mencionar aquela intensidade rítmica que a acompanha ,

capaz de atravessar , contaminar e alterar o corpo com suas pulsações .

 

 

Entre muitos dançarinos da dança afro , o corpo pode acionar diferentes níveis de sensibilidade .

Conforme suas experiências e interesses , dimensões espirituais podem atravessar seus corpos ,

onde qualquer tentativa de distinção entre percepções transcendentais

e a apreciação meramente estética do movimento dançado seria uma fragmentação artificiosa e empobrecedora .

 

 

 

A dança afro é uma linguagem artística que está aberta ao diálogo com dimensões rituais .

Nela podem ser congregados fluxos energéticos , gestos narrativos , estruturas de significado ,

traços culturais inscritos no corpo , estados de entusiasmo , extrema excitação e , acima de tudo , trânsito entre representações .

 

 

Seus sentidos rituais e catárticos também servem aos criadores como materiais de criação cênica ,

o que não impede de fazê-los considerar nessa dança os aspectos formais de movimento

e seus princípios de esforço muscular , diga-se de passagem , inclusive durante a própria manifestação corporal do transe religioso .

 

 

A dança afro, constantemente, admite um jogo entre controle e descontrole do corpo ,

uma somatória de experiências que não deve ser confundida com mero delírio desregrado ,

improvisação aleatória , histeria descontrolada e êxtase ao acaso . A dança afro não representa o transe , e sim o corpo-transe .

 

 

 

O Corpo-transe é considerado como espaço em que se dramatiza e espetaculariza o ethos e a visão de mundo dos orixás na comunidade terreiro .

 

 O transe é o momento que o corpo se transfigura e o dançarino “acolhe” o Orixá em sua pele , formando uma espécie de duplo , um corpo que se multiplica e entra em devires na cena do cotidiano dos Terreiros .

As performances do Candomblé vão desenhando as múltiplas identidades em que o corpo-transe se metamorfoseia e se transforma em obra de arte .

 

É linda a cartografia do corpo em transe no Terreiro de candomblé , uma vez que é no Terreiro que a performance se consuma através da dança .

O Terreiro de Candomblé, dentro de suas complexidades éticas e estéticas

é marcado por um complexo de performances que desenham e dramatizam a história de cada orixá .

O transe , por sua vez , é o    momento – “evento”     ou puro acontecimento nas cenas que se desdobram nos terreiros .

Cada gesto e cada movimento fotografa e desenha as múltiplas identidades e arquétipos dos Orixás .

 

 

 

 

 

 

 

É no Terreiro que os filhos de santo dançam ao som dos atabaques e seus corpos entram

em transe . Mais ainda , o terreiro como espaço dinâmico é o cenário sagrado dos

orixás , o cenário em que celebram a vida e os deuses contam suas estórias através da dança

e do gesto .

 

 

 

Como espaço cênico , o Terreiro é o espaço do movimento , do devir e da complexidade .

É no Terreiro que os duplos do homem se revelam em uma uma trança complexa entre mito , corpo e dança .

 

 

O candomblé é uma religião dançante. É no Terreiro que tudo se movimenta através da dança .

 

É sob o signo da dança que as identidades se transfiguram e os homens celebram junto aos deuses a beleza “odara” dos Terreiros .

 

A dança permite o corpo se movimentar , sair de si mesmo e voltar a si mesmo em um intenso processo de metamorfose.

 

 

 

A música aciona o axé , –  provoca em todos uma transfusão cósmica .

 

Revela um processo de identidade e identificação nos terreiros pois cada dança tem , dentro dos rituais ,

um significado forte pois traduz toda mitologia , toda história e drama vivido pelos orixás .

 

 

foto deleuze candomblé atabaque

Oxosse dança o Aguerê, cujo toque imita o caçador perseguindo o animal .

É assim que os deuses se manifestam aos homens no Candomblé : através da dança … – e Nietzsche iria adorar esta festa –

Pela força do coro , pelo ritmo de cada música , os Orixás dançam .

Uma intensa polifonia , uma verdadeira ópera marcada pela magia através do canto , da dança e dos toques .

 

O Ilú é o “ toque ” de Iansã .

O seu “ toque ” esparrama em todo Terreiro seu lado selvagem como uma tempestade que sacode o mundo inteiro .

O que se aprende com os signos de um Orixá que movimenta tudo e todos ?

Se extrai o aprendizado da complexidade e do movimento ,

se extrai o movimento da vida estampando as possibilidades do corpo , pois a vida do Povo do Santo – tal qual a nossa –

é tomada pelo movimento e pela incerteza .

 

 

 

 

 

 

 

Quando tocam os atabaques é toda a vida que se agita , é toda a natureza que é festejada e celebrada .

É pelo som emitido pelos atabaques que começa todo espetáculo , toda magia e todo encanto .

Quando começa o xirê , todos gritam e saúdam os orixás invocando sua presença junto aos homens .

E assim os Orixás respondem ao chamado dos homens e da natureza ,

movimentando o mundo , a vida e intensificando a complexidade do estar no mundo .

 

 

 

 

Dessa forma , a divindade age diante dos homens e os mesmos podem revelar sua dobra ,

seu avesso , seu “ duplo ” modo de ser dentro desse “ espetáculo cósmico ”   de significados

e de signos sagrados que são revelados em cada canto   – e cada Orixá transforma-se em um prodigioso emissor de signos .

Cabe a nós decifrá-los , senti-los em sua complexidade ontológico-existencial .

 

 

 

Já sabemos que nessa política do significado , – “ É extremamente obscuro o que une esse caos de incidentes a esse cosmo de sentimento ,

– e como formulá-lo torna-se ainda mais obscuro ” ( GEERTZ, 1989, p. 134 ).

No entanto, para Clifford Geertz , o caos e o cosmo se unem nessa política do significado .

Somos tomado pelo caos quando tentamos interpretar uma tribo , uma cultura , um povo ,

pois a obscuridade sempre reina nessas “ piscadelas ” e nesses “ tiques nervosos ”

que fazem parte do mundo confuso e embaralhado que nós mesmos vivemos .

 

 

 

“ O som , como resultado de interação dinâmica , condutor de axé e movimento ” –

conseqüentemente atuante , aparece com todo seu conteúdo simbólico nos instrumentos rituais :

tambores , agogô , sèkèrè , sèrè , kala-kolo , àjà , saworo , – nos três tambores do candomblé :

o rum , que é o maior ; o rum pi , de tamanho médio, e o Lé, que é o menor.

E o corpo – sim, o corpo é o espaço-sagrado onde acontece todo princípio dinâmico ,

portanto complexo , onde os rituais acontecem e as relações se intensificam .

 

 

 

 

 

Corpo – guerreiro / corpo – caçador / corpo – tempestade / corpo – lagoa / corpo – justiça / corpo – mãe /

corpo –  doçura /  corpo – axé  / corpo – pulsante /  corpo – natureza  /  corpo – dança  / – corpo – obra–de–arte /

corpo – candomblé .

Fy

FONTES:

Grupo Corpo [ maravilhoso!]

Paulo Petronílio

José gil

e eu .

Paulo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

a

 

 

 

 

 

 

 

30 Comments »

  1. Lina apresentação,Fy. Só lí a 1ª parte e gostei da contradição corpo-aberto em um assunto onde é comum a expessão corpo-fechado, fechar o corpo, etc… Mais uma homenagem à dança, esta linguagem universal.
    abraço pra todos por aí

    Comment by André — 08/04/2014 @ 5:40 AM

    • Obrigado, André ! Tô esperando vc ler a 2ª parte ! bj
      Fy

      Comment by Fy — 08/04/2014 @ 10:20 AM

  2. Saravá querida, saravá André e quem mais vier! – belezura de post. E quanto a Nietzsche, Fy, dificilmente não adoraria qualquer coisa que voce fizesse!

    ““Agora estou leve; agora vôo; agora, vejo-me
    debaixo de mim mesmo; agora um deus dança
    dentro de mim”. Nietzsche”

    volto depois,
    beijo a todos e muito Axé,
    tio Guz

    Comment by Gustavo — 08/04/2014 @ 6:21 AM

    • Saravá – Gustavo e todo o axé possível!

      bj querido!- te esperamos, como sempre !
      Fy

      Comment by Fy — 08/04/2014 @ 10:22 AM

      • Sem dúvida este post complementa o seu Mercúrio-Exú, Fy. Também sensacional e disponível no blog com este título.

        E, não nos esquecendo a importância atlântica deste orixá, retornando agora na pele de um Dionísio negro e mágico, – mais umas palavras belíssimas do Petronílio:

        Desse modo, tento fazer um contorno literário em torno desse imaginário que foi sendo construído em toro da figura de Exu, o primeiro Orixá a ser cultuado no Candomblé, aproximando-o da figura de Dionísio, deus do vinho, da embriaguez, da confusão, do movimento, enfim, da vida. Acredita-se no Candomblé que nada se faz sem Exu. Isso porque ele representa as paixões, a virilidade, o movimento, a fusão entre o todo e a parte. O lado criança de todos nós, a rebeldia, enfim o lado criativo do homem. A complexidade mitológica e literária desse Orixá impulsiona-nos a perguntar pela sua complexidade enquanto signo mundano e trágico da existência. É ele, Exu, a pós – modernidade com todos os seus medos, temores e tremores. É Exu quem faz e desfaz tudo e todos.

        Assim, a literatura yorubá enraíza-se na encruzilhada do imaginário e faz desse lugar, o “entre lugar” do pensamento. É na encruzilhada que o pensamento se potencializa e se fortalece.

        Com isso, discute-se Exu e Dionísio como tentações estéticas, pois são deuses da mitologia que incita e excita a criatividade dos homens. É o lado louco e obscuro de todos nós.

        A desrazão, o desequilíbrio, terrenos da invenção.

        Daí fortalece o imaginário e o poder que existe na figura de Exu, como arte – afro-brasileira- da – Diferença por excelência, pois é causador da desordem e porta-voz dos fluxos desejantes. É Exu a erótica da vida. Instaura aí uma ética e uma estética da multiplicidade, da individuação e do Devir. Exu é a Diferença. A Diferença é a tentação. –

        (dei espaço, vamos ver)
        beijo a todos
        tio Guz

        Comment by Gustavo — 08/04/2014 @ 11:11 AM

  3. Oi Fy, voce….

    Desde que conheci Sophia de Mello Breyner Andresen, mergulho todos os dias neste mar encantado de que ela fala. Os versos e a voz de Maria Betânia cantando as “senhoras” divinas, Nanã, Oxum, Iemanjá, têm me feito companhia de manhãzinha, são eles que me acordam… Bem lembrando, o cd “Mar de Sophia”, homenagem à poetisa, é belíssimo. Você com certeza vai gostar também. Mas preste atenção quando a cantora invoca Iansã…
    Faço questã de te deixar esta lembrança, jovem Oyá: (com todos os predicados, toda a imanência possível)

    Corpo – guerreiro / corpo – caçador / corpo – tempestade / corpo – lagoa / corpo – justiça / corpo – mãe /

    corpo – doçura / corpo – axé / corpo – pulsante / corpo – natureza / corpo – dança / – corpo – obra–de–arte /

    corpo – candomblé .

    Corpo de Oyá !

    Bel

    Comment by Isabel — 08/04/2014 @ 6:28 AM

    • salve Betânia! – corpo – Oyá !
      Fy

      Comment by Fy — 08/04/2014 @ 10:12 AM

  4. “Vamos chamar o vento”, Dorival Caymmi sussurra com a voz de Betânia, “Vamos chamar o vento”…

    Depois, empresta a voz para Sophia, poeta do mar cantar um ser fabuloso: a Procelária.

    “É vista quando há vento e grande vaga
    Ela faz o ninho no rolar da fúria
    E voa firma e certa como bala.

    As suas asas empresta à tempestade
    Quando os leões do mar rugem nas grutas
    Sobre os abismos passa e vai em frente

    Ela não busca a rocha, o cabo, o cais
    Mas faz da insegurança sua força
    E do risco de morrer seu alimento

    Por isso me parece imagem justa
    Para quem vive e canta no mau tempo”.

    Uma ave, uma mulher, ou todas as mulheres que vivem e cantam no mau tempo.

    A história de Iansã Oiá, literalmente, “aquela que rasga”, e que eu reconto aqui é para elas:

    Iansã Oiá tinha um pai adotivo e vivia com ele na mata.
    Ele era o maior de todos os caçadores.
    Um dia, morreu e deixou Oiá muito triste.
    Ela decidiu que queria fazer uma homenagem para o pai.
    Embrulhou seus pertences de caça num pano, preparou suas iguarias favoritas.
    E dançou e cantou por sete dias, espalhando seu vento por toda parte e fazendo vir todos os caçadores da terra.
    Na sétima noite, embrenhou-se na mata e depositou ao pé de uma árvore sagrada os pertences de seu pai.
    Olorum, que sempre vê tudo, ficou comovido.
    Fez da jovem Iansã guia dos mortos no caminho sagrado, Orum Aiê e mãe dos espaços dos espíritos.
    Fez de seu pai, Odulecê, um orixá.
    E do gesto de Oiá, o ritual ao qual todos os mortos têm direito: comidas, cantos, danças e um espaço sagrado…

    Iansã teve muitos homens e de cada um ganhou uma coisa importante:

    De Ogum, o ferreiro divino, ganhou nove filhos e o direito de usar a espada para defender-se e defender os outros;
    De Oxaguiã, o jovem construtor, ganhou um escudo para proteger-se dos inimigos;
    De Exu, o mensageiro, ganhou o direito de usar a magia e o poder do fogo para realizar desejos;
    De Oxóssi, o caçador, ganhou o saber da caça para alimentar seus filhos;
    De Logun Edé, o senhor das matas, ganhou o direito de tirar das cachoeiras os frutos d’ água para seus filhos;
    Com Xangô, o juiz, viveu o resto da vida e ganhou dele o poder do encantamento, o posto da justiça e o domínio dos raios.

    Um dia, houve uma festa, todos os orixás estavam presentes.
    Omulu-Obaluaê, o temido orixá das doenças, chegou vestido de palha. Ninguém o reconheceu e nenhuma mulher quis dançar com ele.
    Mas eis que, de repente, Oiá-Iansã entra na roda e atrave-se a dançar com o Senhor da Terra.
    E tanto girava que levantou o vento, e o vento descobriu a palha de Omulu.
    Todos puderam ver o quanto ele era belo.
    E o reverenciaram.
    Ele ficou tão grato que fez de Oiá a rainha dos espíritos dos mortos, Oiá Igbalé, a condutora dos eguns, os espíritos dos mortos).
    E ela dançou de alegria a sua dança que convoca o vento.

    As filhas de Iansã devem ser assim, apaixonadas, amantes dos temporais, amazonas de ventanias…

    – não podia deixar de colocar! e, de deixar expresso meu desejo de te ver “dançar” esta lenda linda .

    Bel

    Comment by Isabel — 08/04/2014 @ 6:36 AM

    • oh Bel …. – que coisa mais linda de linda. Ah … quem dera q eu fosse capaz de transformar tudo isto em dança. Mas com certeza, eu vou tentar !

      bj !
      Fy

      Comment by Fy — 08/04/2014 @ 10:11 AM

  5. Em relação à tentar compreender a dança africana, intimamente conectada às suas raízes místicas, é importante lembrar e reforçar a máxima desenvolvida por um historiador muito bom, cujo nome não me recordo de imediato, : existem várias formas de conviver com os terreiros e que ‘acreditar’ não é o único verbo que o povo do santo nos convida a conjugar. Existem outros como amar e respeitar o que compõe a semântica do povo chamado de povo do santo. E a dança, no caso, é exatamente o que nos faz atravessar esta ponte para o que nos é desconhecido. Para que todo este fluxo poderoso nos invada, nos libertando das amarras de uma lógica engessada e fixa, é preciso, sem duvida, dispor da abertura, é preciso dispor de um corpo suscetível, aberto, como descreve José Gil. A palavra é a do corpo-que-sente. Mais uma vez, parabéns!

    (tio) Renato

    Comment by Renato — 08/04/2014 @ 9:20 AM

    • é isto sim, Renato, – mais uma vez a Arte – pq só ela cria esta ponte. E mais… um corpo fechado, enclausurado em desprezo e aversão por ele mesmo, deve viver uns 10% de tudo o que a vida oferece – pelo bem… pelo que não é bem … é preciso sentir. E depois me diga … como pode um corpo dançar, se não estiver possuído pela música?

      bj
      Fy

      Comment by Fy — 08/04/2014 @ 10:08 AM

  6. Boa lembrança, Gustavo, o Mercúrio Exú. Taí uma perfeita incorporação, Van Halen pomba gira alucinando as encruzas do rock!
    é brincadeira… mas nem o Bruce Sprinsteen conseguiu se orixá igual, nem de longe,

    brincadeiras à parte, Fy, super post

    Comment by duc@ — 08/04/2014 @ 2:38 PM

    • huahahauuaha, duc@ o Springsteen tá mais pra tranca rua cachaçado ! Fora a bola vermelhA….humorzinho gringo… ai.

      e que Yemanjá sempre nos receba com carinho, marujada véia. Eu nem sei como é a saudação de Yemanjá, se alguem souber, coloque aí.

      E como é bonita esta mitologia africana, como é musical, pra cima! Seja lá sob qual manifestação, é cheia de mar, ventania, terra, amores, dores, enfim, o lance é todo cheio de vida. E se exú é o dono desta festa, salve ele, Mercúrio, Dionísio, Exú.
      abraçoaê, Gabriel

      Comment by Gabriel — 09/04/2014 @ 12:05 AM

  7. Mercúrio, Dionísio, Exú

    Exu Lonan, o Senhor dos Caminhos

    Exu Osije-Ebo, o Mensageiro Divino

    Exu Bará , o Senhor (do movimento) do Corpo

    Exu Odara , Senhor da Felicidade

    Exu Inã , o Senhor do Fogo
    Exu Eleru , o Senhor da Obrigação Ritual

    Exu Yangi , o Senhor da Laterita Vermelha

    Exu Elegbara , o Senhor do Poder da Transmutação

    Exu Agba , aquele que é o ancestral

    Laroiê – Exu !

    – importado do WindmillsbyFy- pra quem não conhece.

    Comment by Gabriel — 09/04/2014 @ 12:13 AM

  8. Quando se fala em candomblé, umbanda, ou festa de santo, enfim, a dança explode como um ícone principal incorporando, por sí, a melodia filosófica que mais atrai a maioria do pessoal aqui. Mas existe muita literatura interessante sobre estas giras, encantamentos, feitiços, enfim sobre todo este imaginário populado por personagens extraordinárias e encantadas. Claro que nesta festa Exú é rei.

    Ontem, dando uma pesquisada, encontrei este artigo que achei interessantíssimo, escrito por este professor, me parece que de artes cênicas, do Programa de Pós-Graduação da UFBA/BA/BR, Armando Biao.
    Mesmo sendo longo, achei bacana registrar aqui, a título de conhecimento e ilustração. Vou dividir em duas partes.

    Parte 1 –

    A comunicacao nas encruzilhadas da Esfinge, de Hermes, Mercurio, Exu e Maria Padilha: ditos, nao-ditos, interditos e mal-entendidos

    De um modo geral, as encruzilhadas (dai, do mundo) são local da comunicacao, das linguas, das feiras temporarias e permanentes, dos mercados, das cidades, dos teatros edificados e das profissoes das artes do espetaculo. Ai se encontra a Esfinge (e suas charadas mortais), Tiresias (o que ve mais quer os demais, sem nada ver, tao importante para theorein e para theatrum (2)), Hermes (o que nos legou o poder da interpretacao dos textos sagrados e o grande problema da traduzir e trair; na expressão italiana: traduttore traditore).

    Por ai vem Dionisio (o estrangeiro, que será patrono do teatro e da milenar questão sobre as distinções entre cultura e civilização) e por ai circulam Mercurio (o patrono romano do comercio), Exu (a entidade gege nago, do trato humano com a natureza e o sobrenatural), todos os mensageiros e tricksters (responsaveis pelos bem entendidos e pelos malentendidos, esses os que descontrolam) e todos os diabos e fadas (que desencantam e encantam). Aí, nas encruzilhadas, lugares de encontros e desencontros, tambem, se constroem os monumentos memoriais e a sinalização de tráfego (que tentam tudo controlar) e reside, simultaneamente, o perigoso e o maravihoso.

    Ja em outro registro, a encruzilhada é uma representação perfeita do corpo humano (do que esta dentro com o que esta fora) e do cosmos, da mesma maneira que as naus e caravelas da Renascenca e do Barroco sao verdadeiras encruzilhadas ambulantes, inclusive muitas bem maiores, em população, que muitas das cidades de sua época, ancoradas, assemelhadas e representadas nos palcos dos teatros. De fato, a arquitetura naval e teatral, renascentista e barroca, é a mesma, de pau e corda.

    Encruzilhadas são a casa da angustia existencialista da escolha do caminho a tomar ou da imobilidade. Mover-se? Para onde? Para tras? Para a frente? Por qual dos caminhos?

    Aí a rotina ordinária convive com os acontecimentos extraordinarios. Daí serem sua melhor representação, os teatros, encruzilhadas de dança, teatro, ópera, musica, magia, diversão, sobrevivencia e vida das artes do espetáculo! Aí se cruzam pessoas de todo tipo, inclusive marginalizados que so aí tem lugar. Aí e em encruzilhadas vizinhas (bares, prostibulos, etc), formaram-se alguns dos mais importantes ícones de povos do Atlantico Negro: o tango argentino, o candomblé uruguaio, o samba brasileiro, o fado portugues, o flamenco andaluz e o jazz norteamericano!

    Mulheres por um fio

    E nessa perspectiva, da etnocenologia, que se inscreve o projeto de pesquisa, da area de artes, patrocinado em parte pelo CNPq, para o periodo de marco de 2008 a fevereiro de 2011, Mulheres por um fio: inferno, purgatório e paraíso no Atlantico Negro. Trata-se da criação e experimentação cenica de um corpus de dados historicos, poeticos, musicais e teatrais sobre os fenomenos de transformação de uma personalidade espanhola do seculo XIV, Dona Maria de Padilla, na entidade dos cultos afro-brasileiros dos seculos XX e XXI Maria Padilha.

    Orfã e nobre castelhana Mari Diaz (1333/1361), “mujer de buen linaje e fermosa e pequena de cuerpo e de buen entendimiento”, segundo Ayala, cronista da epoca (1991, p. 263). Passa a ser conhecida como Dona Maria de Padilla, em 1352, ao se transformar em favorita do rei D. Pedro I de Castela (1334/1369), único filho legítimo de dois primos-irmãos, D. Alfonso XI e D. Maria, princesa de Portugal, irmã do rei D. Pedro I de Portugal (o que fez de sua amada e assassinada Ines “tao linda” (1320/ 1355) rainha depois de morta (1360). A “fermosissima” D. Maria de Portugal e a “linda” Ines são cantadas por Camoes em Os Lusiadas (canto III, estrofes 102 a 105; canto III, estrofes 118 a 135).

    Dona Maria de Padilla (1333/ 1361) tem com D. Pedro I de Castela quatro filhos, todos infantes reais legitimados: um varão, morto crianca e tres meninas, uma que vive e morre freira e duas que se casam com nobres ingleses. Ela funda em 1353 o Convento de Astudillo, abençoado pelo Papa Inocencio VI, em 1354, que pensa se tratar de uma penitência dos amantes adúlteros, mas que, pouco depois, os excomunga. Morta em 1361, provavelmente de peste, Dona Maria de Padilla é declarada Rainha em 1362, pelo rei D. Pedro I de Castela e pelas autoridades catolicas de Sevilha (dois anos após Ines ter sido declarada Rainha de Portugal).

    A pedido de sua mãe, D. Maria de Portugal, D. Pedro I de Castela manda matar a amante de seu pai. Tambem manda matar tres de seus 10 meio-irmaos, a princesa francesa sua esposa legitima Blanche de Bourbon, varios nobres e religiosos e sua própria mae D. Maria! Contra nobres e a Igreja, alia-se a mouros e judeus. Morto por um de seus meio-irmãos, fica conhecido como O Cruel, depois O Justiceiro, graças a sua tataraneta e de D. Padilla: D. Isabel a Catolica. Alem dos quatro filhos com D. Padilla, tem cinco com outras tres mulheres. Casa-se formalmente com Blanche de Bourbon (1353) e Joana de Castro (1354), irma de Ines de Portugal, mas com elas passa pouquissimo tempo, voltando sempre para Dona Maria de Padilla, para quem constroi boa parte do mocarabe Alcazar de Sevilha e com quem convive de 1352 a 1361 (Merimee, 1961).

    Parte dessa historia sangrenta vira romance de vinganca contra D. Pedro e D. Maria, que teria transformado em cobra um cinto dado de presente pela rainha Blanche de Bourbon a D. Pedro, com a ajuda de um feiticeiro judeu (Ros, 2003):
    Dona Maria de Padilla
    La cinta hubiera en su mano
    Dio la en poder de un judio
    Que era magico e sabio
    Puso el ella tales cosas
    Que al Rey mucho han espantado
    Culebra le ha semajado

    O romancero viejo espanhol se espalha pela península ibérica, que, de 1580 a 1640, era uma só Espanha, onde a Inquisição passa a registrar invocações a Padilla. Algumas dessas invocações chegam ao Brasil, atraves das “feiticeiras” expulsas de Portugal, ja antes do seculo XVIII:

    Eu te conjuro vinagre, pimenta e enxofre em nome
    de Pedro, com tres da padaria, tres da cutilaria, tres
    do acougue, tres do terreiro, tres do haver do peso,
    todos tres, todos seis, todos nove se ajuntarao no
    coracao de Pedro entrarão, se mais são, ou menos
    são, 56 diabos se ajuntarao, a torre do Primao se
    treparão, nove varas de amor apanharão, na mo de
    Caifas as agucarão, no coracao de Pedro as cravarão,
    que nao possa estar, nem sossegar, até comigo
    não vir estar; Dona Maria de Padilha com toda a
    quadrilha me trazeis Pedro […]

    Barrabas, Satanas, Caifas, Maria Padilha com toda
    a sua quadrilha, Maria da Calha com toda a sua
    canalha, cavalo marinho que com pressa os traga
    pelo caminho.

    Hoje, em Sevilha, onde, assim como em Astudillo, ao lado do Convento das Irmas Clarissas, o nome de D. Maria de Padilla designa uma importante rua. A placa que aparece nesta imagem que ora lhes exibo encontra-se no muro da Universidade de Sevilha, onde funcionou a antiga fabrica de tabacos, na qual trabalhava a famosa personagem de Merimee Carmen. Na novela original, Carmen tambem invoca D. Maria de Padilla, logo antes de ser morta por Don Jose, que, assim, narra esse episodio:

    […] J’esperais presque que Carmen se serait enfuie; elle aurait pu prendre mon cheval et se sauver… mais je la retrouvai. Elle ne voulait pas qu’on put dire que je lui avais fait peur. Pendant mon absence, elle avait defait l’ourlet de sa robe pour en retirer le plomb. Maintenant, elle etait devant une table, regardant dans une terrine pleine d’eau le plomb qu’elle avait fait fondre, et qu’elle venait d’y jeter. Elle etait si occupe de sa magie qu’elle ne s’apercut pas d’abord de mon retour. Tantot elle prenait un morceau de plomb et le tournait de tous les cotes d’un air triste, tantot elle chantait quelqu’une de ces chansons magiques ou elles invoquent Marie Padilla, la maitresse de Don Pedro […] (Merimee, 1945, p. 180). (4)

    Carmen contrabandeou bens materiais e amorosos entre Sevilha e Ronda, onde há um museu (turístico mais que etnografico) para a bruxaria, que, no entanto, silencia sobre a Padilla!

    A partir do final de 2007, e ja realizando as pesquisas preliminares para o projeto que começaria a ser, parcialmente, financiado pelo CNPq em marco de 2008, a convite de ex-alunos, criei a personagem de uma mulher por um fio. Tratava-se de uma mulher madura, frustrada no amor, professora de canto e aficionada pela poesia e por óperas, que invocava, em suas quatro cenas de um espetaculo, a Padilha . Nesse processo, usando como inspiração a personagem famosa, mais um das encarnações da Padilla, que cantava, em sua primeira entrada na popularissima ópera, com musica de Georges Bizet e libreto de Henri Meilhac e Ludovic Halevy, o amor como um passaro selvagem e indomavel, que ninguem consegue domesticar, a Habanera L’amor est un oiseau rebelle, propus a seguinte parodia:

    Oh senhora Maria Padilha
    Minha alma venha alegrar
    Traga paz aqui para sua filha
    Que so canta para não chorar
    Amor Amor Amor Amor
    O amor é mais
    Mais que um poema

    Comment by Gustavo — 09/04/2014 @ 1:06 AM

  9. parte 2:

    Tambem no romantismo frances, alem de Merimee, Victor Hugo se interessou pelo imaginário espanhol, tendo escrito um poema, em 1828, sobre uma certa freira chamada Dona Padilla del Flor, que é castigada pela furia divina dentro de uma igreja catolica juntamente com seu amado, sendo ambos fulminados por um repentino e inusitado raio. Georges Brassens faria desse poema uma popular cancao francesa em 1956.

    Venez, vous dont l’cil etincelle
    Pour entendre une histoire encor
    Approchez: je vous dirai celle
    De dona Padilla del Flor
    Elle etait d’Alanje, ou s’entassent
    Les collines et les halliers
    Enfants, voici des bcufs qui passent
    Cachez vos rouges tabliers
    Il est des filles a Grenade
    Il en est a Seville aussi
    Qui, pour la moindre serenade
    A l’amour demandent merci
    Il en est que parfois embrassent
    Le soir, de hardis cavaliers
    Enfants, voici des bcufs qui passent
    Cachez vos rouges tabliers
    Ce n’est pas sur ce ton frivole
    Qu’il faut parler de Padilla
    Car jamais prunelle espagnole
    D’un feu plus chaste ne brilla
    Elle fuyait ceux qui pourchassent
    Les filles sous les peupliers
    Enfants, voici des bcufs qui passent
    Cachez vos rouges tabliers
    Or, la belle a peine cloitree
    Amour en son ccur s’installa
    Un fier brigand de la contree
    Vint alors et dit: “Me voila!”
    Quelquefois les brigands surpassent
    En audace les chevaliers
    Enfants, voici des bcufs qui passent
    Cachez vos rouges tabliers
    Or quand, dans la nef descendue
    La nonne appela le bandit
    Au lieu de la voix attendue
    C’est la foudre qui repondit
    Dieu voulu que ses coups frappassent
    Les amants par Satan lies
    Enfants, voici des bcufs qui passent
    Cachez vos rouges tabliers

    O sexo selvagem e irracional é, aí, mais uma vez, associado á mulher que não cumpre sua obrigação religiosa. Mas, na Europa e, sobretudo, na propria Espanha, o teatro (Donizetti, 1845; Villaespesa, 1913) e ensaios históricos reconstruiriam o imaginário relativo a Dona Maria, a partir das cronicas de Ayala, chamando-a de “dulce y equillibrada castillana” (Ferrer, 1975) e de “angel bueno de Pedro el cruel” (Ros, 2003), fazendo dela uma vitima do rei cruel e distanciando-a, assim, do que viria a ser a Maria Padilha brasileira, mais próxima do que construiram o romancero, a Inquisição e a tradição romantica francesa.

    Amazona (sem coração? sem o seio do coração? amazona?) Maria Padilha brasileira é a rainha das encruzilhadas e de todas as pomba-giras, entre as quais se destaca a Nega de Um Peito Só.

    No dizer de Monique Augras (2001, p. 293), trata-se de uma “diablesa sedutora y terrible”, “permanencia en el imaginario social de una vision amenazadora de la mujer que afirma su sexualidad”.

    Para a etnolinguista Yeda Pessoa de Castro, para quem Maria Padilha e uma “entidade muito popular e muito temida, tida como Exu, femea, ladrona, maledicente e escrava de Oxum” (Castro, 2001, p. 277), pomba-gira é uma palavra de origem banto, que designa um substantivo feminino:

    Exu-fêmea, variante de Bambojira (entidade congoangola), reparte com ele o controle das encruzilhadas e caminhos, e exerce influencia sobre os namoros, noivados e casamentos desfeitos. E representada na figura de uma mulher sedutora, branca, de cabelos longos e louros, tida como protetora das prostitutas (Castro, 2001, p. 317).

    Para Carlos Caroso e Nubia Rodrigues (2004, p. 336), por conta de pesquisa de campo realizada na Bahia, entre as numerosas variantes de exus se encontram as pomba-giras, as femeas “Maria Padilha” (a primeira da lista que apresentam) e a “Nega de Um Peito Só” (a ultima personagem feminina da mesma lista).

    Personagem de diversos folhetos de cordel, a amazona Nega De Um Peito Só aparece brigando com Lampião, no folheto O encontro de Lampião com a Negra Dum Peito Só, de Jose Costa Leite (s.d.), que já adaptei para o teatro em diversas ocasiões, a mais recente em 2008 (Biao, 2009). Aí são bem perceptíveis os ecos da Inquisição e dos preconceitos sexista, machista e racista, dessa já longa tradição, na qual, no lugar de judeus e ciganos, aparecem os negros. Aqui, teatralmente, mais uma vez, trechos desse folheto, comecando com a preparacao de um feitiço:

    Tres canelas de defunto
    3 pés de capim assu
    3 galhos de pinhão roxo
    3 escamas de mussu
    3 galhos de mussambe
    3 bicos de zabele
    e 3 penas de jacu.
    Quatro rabos de arraias
    4 pes de seriema
    4 maracais de cobra
    4 folhas de jurema
    4 caveiras de gente
    4 dentes de serpente
    e 4 penas de ema.
    Cinco bicos de soco
    5 costelas e um papo
    5 folhas de maconha
    5 cabelos de sapo
    5 grilos encangados
    5 vidros preparados
    do suco do jenipapo.
    A oração do sapo-seco
    ela rezou com cautela
    benzeu com a mão esquerda
    e depois botou na panela
    o suco de um pepino
    a raspa do som do sino
    e o leite da favela.

    Rezou mais a oração
    da cabra preta falada
    e a de São Cipriano
    e foi com a panelada
    muito contente e faceira
    numa noite de sexta-feira
    botar numa encruzilhada…

    E fala pra Lampião:
    * Por voce eu vivo louca
    ja que a hora e chegada
    lave a boca bem lavada
    e venha beijar minha boca!

    * Te dana!
    negra feia desgraçada
    nao gosto de negra moça
    quanto mais velha e pelada

    * Eh coisa racista danada!

    * Ela balançava o peito
    por lado de Lampião dizendo:

    * Quer ou nao quer?
    deixas de cavilação
    eu vim pra voce mamar
    voce deve aproveitar
    esta boa ocasiao.

    * Botou o peito pra fora
    que parecia uma jaca
    Lampiao se afastou
    e pegou no cabo da faca
    dizendo:

    * Daí pra tras

    * Rapaz voce está feito vaca?

    * A negra deu uma dentada
    na venta de Lampião!
    Depois um galo cantou
    e ela ficou sem ação.
    Na vista dele, despiu-se,
    deu um estouro e sumiu-se
    sem deixar sinal no chão.

    E assim continuam as pomba-giras voando pelas encruzilhadas, sumindo e reaparecendo. Elas se encontram no Rio de Janeiro, em São Paulo, Recife e em Salvador, no Brasil. Mas as Padilhas tambem se encontram no Uruguai, na Argentina e na internet, onde, por encomenda, pode-se adquirir uma “Maria Padilha da Calunga 40 cm–Pintada con acrilico y barniz–patinada al oleo, acabado nacarado estritamente a pedido.”

    A rainha das encruzilhadas nao bebe cachaça, so bebe champanhe, nao fuma charuto, so fuma cigarrilha ou cigarro com piteira, aprecia as rosas vermelhas, uma boa dança e um bom “ponto” convidando-lhe para “comer”.

    E assim se dá a comunicacao nas encruzilhadas, fazendo-se teatro e teoria, como eu tentei obrar aqui, nesta minha comunicação. Assim, nas encruzilhadas das charadas mortais da Esfinge, da capacidade tradutora (traidora?) de Hermes, dos vôos comerciais de Mercurio, dos ditos, não-ditos, interditos e malentendidos de Exu e de Maria Padilha, recriando imaginários, usando todos os meios estéticos de propaganda política e ideológica, de gozo artístico poético musical e teatral e fazendo-se necessidade absoluta do extraordinário no cotidiano!

    Salve Pomba-gira Maria Padilha. Rainha das sete encruzilhadas!

    muito bom! Eu andei dando uma corrigida, mas com certeza muita coisa me escapou, e o teclado do cara não ajuda.

    beijo a todos
    tio Guz

    Comment by Gustavo — 09/04/2014 @ 1:10 AM

    • Gustavo! que maravilha! (estou copiando todas as mandingas, adorei isto!)
      B E I J O da Ju

      Comment by Juliana — 09/04/2014 @ 11:14 AM

      • huahuahuaha, Ju, difícel vai ser achar os ingredientes!

        Comment by Gustavo — 10/04/2014 @ 5:43 AM

  10. Fy… muito legal, mesmo.Eu já estava com saudade do José Gil.

    Ai que vontade ir pra um terreiro, dançar, de Maria Padilha, Nega de um seio só (tambem virei fã desse negócio de sumir sem deixar sinal nochão) que macumbaria linda!
    beijokas da Ju

    Comment by Juliana — 09/04/2014 @ 11:20 AM

  11. O seu “ toque ” esparrama em todo Terreiro seu lado selvagem como uma tempestade que sacode o mundo inteiro . O que se aprende com os signos de um Orixá que movimenta tudo e todos ? Se extrai o aprendizado da complexidade e do movimento , se extrai o movimento da vida estampando as possibilidades do corpo , pois a vida do Povo do Santo – tal qual a nossa – é tomada pelo movimento e pela incerteza .

    Epahêi – Oyá !

    Marianne

    Comment by Marianne — 09/04/2014 @ 11:14 PM

  12. A dança é a arte primeira, não apenas na Terra, mas no mundo em geral. Como se, na criação do universo, tivessem soprado um chifre de Oberoma fim de obrigá-lo a girar inteiramente em círculos eternos. Todos os planetas dançam em torno do Sol, e o próprio Sol, cuja corpulência impede demasiado movimento, gira sobre si mesmo, arrastado pelo prazer geral da dança.

    Do candomblé ao Lago dos Cisnes, este blog dança.

    bjokas da Carol poética.

    Comment by Carol — 09/04/2014 @ 11:25 PM

  13. Padilha bailarina, capoeira, candomblé, exú, ninfas, sáriros, Deleuze e amigos, Ingold, Rodin, feiticeiros, Caio Fernando Abreu, Espinoza, Clarissa e Clarice, relâmpagos, Nietzsche, tempestades, garoas, e o que há de pintar por aqui, a gira começou e os atabaques não param mais! Quem entrar na roda entrou, quem não gostou, bye bye.

    abraço blog dançarino, Alexandre

    Comment by Alexandre Golaiv — 09/04/2014 @ 11:33 PM

  14. Bom Dia pessoas, parabéns pelo post e pelos comentários.
    Uma coisa importante nesta cultura afro pelo menos me parece assim, é que esta profusão de símbolos ou arquétipos, não nos agride, não violenta nossa integridade como seres humanos que raciocinam. Ao contrário, nos encanta, nos poetiza. E isto, acontece também aos não-deleuzianos, aos que não observam o espetáculo sob o ponto de vista da transformação-devir ou do potencial de desdobramento possível em um corpo-paradoxo. Ao mesmo tempo, nos sensibiliza esta luta para preservar as tradições de um continente-mãe contra as forças que os tragavam para o mundo moderno, quando o colonialismo e a escravidão dispersaram os filhos da África pelo mundo. Uma passagem que eternamente nos envergonhará e assustará. Mas é louvável, este paradigma que heróicamente opera no binarismo conservação/assimilação que nos pretende imaginar uma África mítica, atemporal e desistoricizada. É realmente heróico, e me remete à Espinoza e a contínua comtemporaneidade de sua filosofia holística. Um panteísmo-ópera, como bem disse o post, a reconstituição contínua de um passado pré-existente e congelado no momento em que os primeiros navios negreiros zarparam na direção diametralmente oposta. ), “o que se encontra por lá não é visto como fruto de um contexto presente, mas como uma conservação, perpetuação do passado. O Continente Negro se torna um museu vivo e animado”. Não é fácil, é um esforço sobre-humano. Como a própria África já não retrata este quadro, isto nos remete a todo um continente cultural transcendente à realidade, como uma espécie de Atlântida inesquecível.

    Fy, parabéns pela apresentação.

    Abraço
    João Pedro

    Comment by João Pedro — 10/04/2014 @ 12:25 AM

  15. A criação é sempre dissidente, transindividual, transcultural.
    Félix Guattari

    Belíssimo, belíssimo. Incluindo os esculturais Dionísios, o que me faz adicionar a rica palavra Beleza à frase de Guattari.
    Mais uma vez o Windmills e seu trajeto nômade nos contamina. Assim como a Carol desejei um corpo-transe, um “candomblé” que se incorporasse e me trouxesse as emoções dos elementos vibrando vivos em minha corrente sanguínea. Visceral.
    Através dos comentários excelentes pensei que talvez a palavra seja corpo-percorrer.
    Vou me inscrever no Grupo-Corpo.
    Bel

    Comment by Isabel — 10/04/2014 @ 12:41 AM

  16. aloha

    beijo menina

    Comment by Tocayo — 10/04/2014 @ 12:05 PM

  17. Aloha Tocayo, não podia faltar!

    Ilustando também:

    A exposição, idealizada por Marc Benaïche, é uma versão maior e mais completa da mostra « As músicas negras no mundo », apresentada em Dakar em 2010, em Saint-Denis de la Réunion em 2011 e em Johanesbourgo em 2012 – com cenografia do brasileiro Pedro Mendes da Rocha.

    abraço
    João Pedro

    Comment by João Pedro — 11/04/2014 @ 1:24 AM

  18. Conta-se que, quando perguntaram a Isadora Duncan (1878–1927), uma das mais célebres bailarinas do mundo, em que época começou a dançar, ela teria respondido: “No ventre de minha mãe”. E é verdade, seja lá onde for, numa pista de dança, num ritual de candomblé, de umbanda, numa rave ou na calçada, parece impossível ficar parada. O homem é feito de muitos ritmos e seu corpo responde naturalmente. Até grávida eu dançava. Carolzinha que o diga. E só eu sei o quanto meu corpo me ajudou na hora do parto!

    Falando em musica afro, olha que bacana que eu achei :

    bijos pra todos, Juuuuu saudades, gata !
    Karina

    Comment by Karina — 11/04/2014 @ 5:01 AM

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    Comment by Sybil — 28/01/2015 @ 6:06 PM

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