Sophia de Mello Breyner Andresen
Existem homens e homens .
Existem mulheres e mulheres .
Alguns homens , seja onde for , nascem Reis .
Algumas mulheres , seja onde for , nascem Rainhas .
Como os Reis e Rainhas deveriam ser .
este poema é de uma delas .
Em Creta
Onde o Minotauro reina
Banhei-me no mar
Há uma rápida dança que se dança em frente de um touro
Na antiquíssima juventude do dia
Nenhuma droga me embriagou me escondeu – me protegeu .
Só bebi retsina tendo derramado na terra
a parte que pertence aos deuses
De Creta
Enfeitei-me de flores e mastiguei o amargo vivo das ervas
Para inteiramente acordada
comungar a terra
De Creta
Beijei o chão como Ulisses
Caminhei na luz nua
Devastada era eu própria como a cidade em ruína
Que ninguém reconstruiu
Mas no sol dos meus pátios vazios
A fúria reina intacta
E penetra comigo no interior do mar
Porque pertenço à raça daqueles que mergulham de olhos abertos
E reconhecem o abismo pedra a pedra anémona a anémona flor a flor
E o mar de Creta por dentro é todo azul
Oferenda incrível de primordial alegria
Onde o sombrio Minotauro navega
Pinturas
ondas
colunas
e planícies
Em Creta
Inteiramente acordada
atravessei o dia
E caminhei no interior dos palácios veementes e vermelhos
palacios sucessivos e roucos
Onde se ergue o respirar da sussurrada treva
E nos fitam pupilas semi-azuis de penumbra e terror
Imanentes ao dia –
Caminhei no palácio dual de combate e confronto
Onde o Príncipe dos Lírios ergue
os seus gestos matinais
nenhuma droga me embriagou
me escondeu – me protegeu
O Dionysos que dança comigo na vaga não se vende em nenhum mercado negro
Mas cresce como flor daqueles cujo ser
Sem cessar se busca e se perde e se desune e se reúne
E esta é
a dança do ser
Em Creta
Os muros de tijolo da cidade minóica
São feitos com barro amassado com algas
E quando me virei para trás da minha sombra
Vi que era azul
o sol
que tocava o meu ombro
Em Creta onde o Minotauro reina
atravessei e vaga
De olhos abertos
inteiramente acordada
Sem drogas e sem filtro
Só vinho bebido em frente da solenidade das coisas –
Porque pertenço à raça daqueles que percorrem o labirinto,
Sem jamais perderem o fio de linho da palavra
.
Ilustrações:
Rassonier
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